Todo mundo espera algo de um viajante: que ele esteja viajando. O tempo todo.
De um lado da tela a expectativa e voracidade de consumir paisagens lindíssimas, novas experiências, informações culturais de cada novo lugar em apenas alguns segundos. Que lindo, interessante! Clicou, próximo.
Do outro lado, o ser humano que percorreu dezenas de quilômetros a pé, comeu comidas que seu corpo nunca viu antes, pensou e falou em 3 idiomas diferentes ou talvez só mímicas, dormiu num quarto com outras 12 pessoas, precisou se apresentar 5x no mesmo dia, mas como “olha onde estou, preciso aproveitar e também ter material pra conteúdo, amanhã levanto as 5h da manhã pra fazer um trekking de 3 dias e quando voltar mudo de cidade”. Uf… cansou só de ler? Exatamente. Ainda falta editar, postar, ficar atento às alterações dos aplicativos e responder o público.
Quando se vive na estrada, explorando e criando, sábado ou terça no calendário já não fazem diferença, mas a verdade é que o corpo nunca precisou de calendário.
Essa semana vi um post de uns artistas de férias. Uma casarão super legal, um café da manhã digno de hotel e vários amigos em volta da mesa. Aquela foto com cara de sono e o roteiro do dia: nada e piscina. Apenas 2 segundos foram suficientes pra minha mente pensar: nossa que saudade de tirar férias assim com meus amigos. E sim, eu vivo viajando.
Férias. Acordar sem hora e sem planos pro dia, sem precisar pensar a cada segundo que “tal coisa seria um bom conteúdo” ou qual horário deve ser em que lado do planeta pra o seu trabalho de horas e dias que foi reduzido a 1 min de vídeo não seja completamente esquecido nas ondas do algoritmo ou da falta de paciência das pessoas. Conversar abobrinhas pessoalmente e rir da espontaneidade de cada um no seu humor matinal. Um dia todo ou quem sabe um feriado todo sem preocupar com o celular, porque afinal a rede social mais importante está ao redor da mesa.
Foi aí, com uma simples foto, que percebi o quanto desejava ter férias. Férias de verdade. Dessas que a gente tira de nós mesmos. Que não precisa saber quem se é nem lembrar ninguém disso. Pra não ir a lugar algum, pra não produzir nada e pra só estar entre aqueles que nos fazem bem, perto da natureza. Recarregar.



“Ah, mas você pode trabalhar da praia” Sim, mas eu também gostaria de só ir à praia. Algumas coisas que talvez não te contem sobre a vida nômade e criação de conteúdo.
/viciados em adrenalina
não falo de esportes radicais. A adrenalina é um hormônio no corpo de qualquer ser humano, produzida para te manter em alerta. Qualquer atividade mais estressante ou desconhecida te coloca em estado de alerta. Ou seja, se você vive 24/7 em contato com o novo e o desconhecido, o seu corpo produz mais adrenalina que o de alguém que está “na zona de conforto”. E isso vicia? Não sou nenhuma conhecedora de medicina mas o que percebo no meu cotidiano é que eu só consigo relaxar do meu estado de alerta aproximadamente 2 semanas depois de estar num mesmo lugar (estimado pelas minhas observações em terapia). Ou seja, o ritmo de viagem precisa ser ajustado com muita atenção ao seu corpo e mente, o que já nos leva ao próximo ponto
/o tempo é relativo
minha psicóloga sempre me lembra de rever se o tempo interno está condizente com o tempo externo. Porque eles não são iguais. Se eu viajo para uma cultura muito diferente da minha, as adaptações e reflexões podem causar impactos internos que não serão processadas num espaço-tempo daquela mesma imersão. Será que eu realmente preciso ver algo novo então ou preciso só deixar as informações que já me atravessaram encontrar um espaço dentro de mim? Nesse tempo introspectivo como fica o trabalho que depende das minhas aventuras e fotos? Pois, não fica.
/a terapia está em dia?
não da pra chamar de home office, afinal não tem o “home”. O trabalho remoto, pede muita disciplina de quem o executa, mas o trabalho de criação vai além disso. Como dar um contorno para algo que antes fora seu espaço de contato e comunicação com a família e os amigos que ficaram? Como não pensar nas ideias que constantemente saltam na tela mental? Se eu posso descansar em qualquer horário do meu dia, porque precisaria descansar dias seguidos? Como buscar referências sem me comparar? De repente não trabalho mais com uma equipe em que cada um tem seu quadrado e sua área de atuação, e sim faço de tudo um pouco e meus colegas de trabalho são outros criadores que, caso a terapia e a autenticidade não estiverem em dia, dá-lhe comparação. Trabalho é transformação de energia. Pra que eu me recarregue, descanse, tire férias, o ideal seria o “não fazer”. E pra quem viaja, isso envolve não viajar.
Esse não é um texto de “desincentivo” mas somado a tudo isso, adicione um tempo de dedicação a ajustar uma rotina numa vida sem rotina e o fato de que inicialmente você não receberá dinheiro para fazer nada disso, mas se não começar sem receber talvez nunca chegue a receber. A vida do viajante é maravilhosa sim, mas não é pra qualquer um. A do criador de conteúdo então… só recomendaria pra quem tem inteligência emocional.
Acredito muito mais em quem me diz “não conseguiria fazer o que você faz” do que quem me diz “quero muito viver como você”. Porque normalmente, quem quer viver assim, ainda não entendeu os “contras” do caminho.
A velocidade da informação, a crescente onda de ansiedade, o excesso de conteúdo e a geração influenciadora, ao meu ver, vai levar muitos de nós a um burn-out disfarçado e mal explicado em pouquíssimo tempo.
Lex, não entendi. Vale a pena viver assim?
Olha, consumido pela rede social: não. Mas em movimento, viajando e conhecendo diferentes realidades: sim, cada gota de suor e estresse cerebral que eu passo. Ainda assim, vale lembrar que eu me dedico diariamente a manter uma estrutura mental e emocional. Quer se unir ao nosso bonde? Vem, seja bem vindo! Não quer? Eu entendo.
Um grande beijo
e uma respiração profunda,
(hora de começar a arrumar a mala, aprender caminhos, verificar documentação e embarcar em outra dimensão)