Como você existe se não for apenas uma questão de sobrevivência?
a nossa grande evolução quanto aos outros animais é poder se adaptar a qualquer novo ambiente. Que proveito você tira disso?
Passei as ultimas três semanas vivendo numa pequena vila surfista na costa de Portugal. Nesse exato momento, escrevo do avião. O painel de bordo me diz que estou sobrevoando Fortaleza e que em aproximadamente 3h pousarei em São Paulo. No entanto, as mesmas 3h precisarão ser consideradas para o intervalo entre o pouso e a chegada na casa da minha família. São Paulo.
Peniche, a tal vila portuguesa, tem 10 mil habitantes. São Paulo, 15 milhões. A palavra contraste chega a ser um eufemismo.
Em Peniche você vê constantemente as pessoas se locomoverem em motinhos elétricas que nem precisam de permissão para conduzir. Também é comum encontrar pessoas mais velhas que dirigem carros bem pequeninos com menos cilindradas que uma moto, identificados por uma placa amarela para que todos saibam que ali a velocidade é marcha lenta e carinhosamente (ou maldosamente) apelidados de “mata velhos”. Você até vê um ônibus ou outro circular nas ruas mas é pra suprir o trajeto entre cidades próximas afinal, ali dentro da nossa pequena península tudo se faz a pé.
Já fazia 1 ano e meio que eu não colocava os pés na maior metrópole da América do Sul, que eu costumeiramente chamo de “casa” mas sentimentalmente não mais.
Vim prestando atenção à sensação esquisita que me invadiu desde que começou o embarque. Felicidade em ver amigos e família, preguiça de imaginar o trânsito, tristeza de pensar que não acordarei mais todos os dias ao som de passarinhos nem poderei ir ao mercado de motinho e pegar uma prainha no fim do dia.
Me peguei pensando que 1,5 ano atrás embarquei para viver 3 meses no interior do Senegal. Numa casa com chão de areia, sem cozinha, com banheiro seco, pouca água, muito calor, e muita manga. Numa vila em que cada sorriso e cada falta de privacidade me ensinou muito sobre comunidade. (As newsletter #12 e #13 falam mais sobre isso.)
Percebi que quando estava na África muitas pessoas me questionavam sobre escassez. Tem comida suficiente? Falta água? Como assim não tem banheiro? Etc, etc. Sentia que a maioria das pessoas precisava encaixar aquela “ideia” que tinham sobre o que é a África nas figuras e relatos que eu compartilhava. A gente tem essa mania sabe? Eu não gostava. A vida ali era abundante apesar de menos opções.
Não é que não falte nada, mas o fato de existir rede, comunidade e compartilhamento fazia com o que existia ser suficiente para todos.
Pra gente, por outro lado, falta muito. Vi mais gente morrendo de fome e morando na rua em São Paulo do que no Senegal.
Não estou vomitando todos esses contrastes do nada, acompanha aqui.
A maioria dos voluntariados que busquei fazer nesses anos de viagem eram em comunidades pequenas, remotas, fazendas, ou vilas de praia. Mais do que ser sobre em que lugar do mundo estava, era sobre a qualidade da característica daquele espaço. Com a experiência vamos percebendo que não é só sobre “esse país” ou “aquele país”, “essa cultura” ou “aquela cultura” e sim que há algo em comum em todas as vilas, em todas as fazendas, em todas as praias cheias de surfista, e em todas as grandes e megas cidades.
As atividades rotineiras numa vida mais rural (dessas que um mesmo planta o que come, precisa buscar lenha pro fogão ou pra lareira, trabalhar de acordo com os ciclos da natureza) nos coloca de novo em contato com a responsabilidade da sobrevivência da forma mais humana possível: é sobre comer e se proteger. Tudo o que a gente chama de trabalho nessa bolha são tarefas relacionadas à sua própria sobrevivência.
Na cidade parece que esquecemos. Não planto mais, não mato a galinha do almoço, não preciso saber quando é época de plantar verduras, não preciso buscar minha lenha. Vou ao supermercado e “pego” tudo o que preciso. Já que não sou eu que faço, e as coisas não se fazem sozinhas, alguém fez por mim (mas já esqueci disso também). Esse alguém cobra dinheiro para facilitar a sua vida e ainda lucra em cima e você não se lembra sempre que isso também é uma questão de sobrevivência até que tudo começa a ficar muito caro ou a faltar. Você trocou a sua força de trabalho por dinheiro e agora usa o dinheiro para pegar as coisas que teria feito você mesma em outra época ou em outro contexto.
Todas as vezes que compartilho essas vidas rurais nas redes sociais recebo mensagens curiosas, reflexivas e até um pouco preocupantes ao se notar o tamanho da distância que criamos entre aquilo que realmente importa e o que achamos que importa.
Na cidade grande vejo muito mais pessoas apenas sobrevivendo do que nas vilas rurais em que já estive. Se metade ou mais da metade do seu dia são consumidos por trabalho e deslocamento, você apenas sobrevive. Mas olha que curioso, a vida talvez seja sim, em uma bela porcentagem, apenas seguir vivo, acontece que é fazendo isso acontecer por si próprio que você encontra propósito.
Tentaram te vender o propósito como profissão. Não é. Recebo ainda mais mensagens de pessoas se sentindo perdidas. O que fazer pra onde ir porque as coisas são assim? Faz sentido. E aí que vem a pergunta:
Como você existe se não for apenas uma questão de sobrevivência? Que ser humano sou, o que aporto na minha comunidade?
E como saberia eu ou você responder tal questão se não há tempo nem contexto para experimentação?
É comum não saber. É previsível não saber. Porque você (como adulto) provavelmente nunca fez. Ainda.
Notícia triste é que ninguém vai te dar o aval ou segurar espaço para você ir lá experimentar. A cidade grande vê engrenagens não pessoas.
Não me leve a mal, não quero romantizar a vida no campo, nada disso. Quero só falar sobre voltar ao básico. Afinal a cidade grande também nos serve com arte, com diversidade, com informações. Mas é como se ela fosse a analogia do que não fazer numa rotina a longo prazo e isso parece que ninguém vê (ou finge que não).
Pode parecer contra intuitivo mas talvez, para descobrir como você existe nesse mundo para além da sobrevivência, seja necessário justamente ir lá experimentar sobreviver por conta própria. Usando as suas mãos, vivendo de acordo com os seus ciclos, atento ao seu caminho.
A cidade grande nos desconectou do senso de comunidade e as redes sociais nos dão uma falsa sensação de tê-las novamente. Mas isso é tema para outra news.
Por enquanto veja se você sabe como é existir pra além de sobreviver? Anota! Anota o que é que coloca um sorriso no seu rosto, anota como você se vê usando as 24h do seu dia.
Para que a gente possa expandir é também preciso ter mais referências. E isso não é só sobre ouvir ou ler outras pessoas, como vocês estão aqui fazendo agora e eu agradeço imensamente que possa ser uma dessas pra alguns de vocês. Mas é sobre vocês mesmos.
Vai lá viver. Por si próprio. Você pode acabar tropeçando no seu propósito.
Lex